sábado, 17 de janeiro de 2009

OS BRAÇOS

Ficou adulto como qualquer ser humano. Um adulto brasileiro, qualquer como um jovem do seu tempo. Como qualquer pessoa. No entanto, depois, quando já tinha pouco mais de vinte anos, começou a acontecer o que nunca esperaria, ninguém esperaria: seus braços começaram a envelhecer. Só os braços. O corpo permanecia jovem. E muito rápido ficavam velhos os braços. Os braços perderam a força. A pele ficou flácida, como os músculos, e enrugada, com pintas senis. Foi aos médicos, que ficaram confusos. Já só usava mangas compridas. Não quis mais amigos, nem namoradas. Não quis mais trabalhar. Os médicos queriam estudos, queriam seus braços nos anais médicos. Motivo para amputá-los não havia, tampouco um tratramento convencional, afora algumas terapias alternativas e ordinárias, sem eficácia alguma. E o rapaz estava, com isso, virando um caso. Os jornais quase chegavam a ele já, pois boatos gritavam sobre ele. Um dia fugiu. Para longe de qualquer intenção social. Passou a morar em uma ilha, no meio de um rio longe de cidades. Comia peixes, plantava hortas com seus braços muito velhos. Seus braços estavam muito muito velhos, e o corpo jovem. A vida era difícil e tranqüila na ilha sozinha. Costumava deitar em uma rede pelas tardes; às vezes ficava nela até o dia amanhecer, os braços sempre à vista. Tinha os braços não como tinha as pernas. Pareciam seres separados e mudos ao lado. O silêncio e a solidão nem de perto se igualariam ao sacrifício de conviver com outras pessoas, por isso não havia sofrimento na vastidão de mato verde fechado, com água em correnteza atravessando. O único desespero: o que aconteceria? O que o futuro descreveria da sua vida? Em uma dessas tardes, percebeu que seus braços estavam frios. A tarde quente, o corpo suando. Horas depois, os braços estavam gélidos. O resto do corpo, tão quente como a noitinha, suava. Os braços não estavam mais só velhos. Estavam mortos. Nos próximos dias, os braços ficaram inchados, a pele começou a estriar, cheirava mal, as unhas roxas. Foram dias de inferno. Ele mal comia, mal bebia, chorava rugindo quase pulando para a loucura, os urubus voando círculos no céu azul, os pardais fugindo. Demorou muitos dias para tudo aquilo anestesiar na convivência. Até que uma vez o cheiro não o perturbava mais. Estava exausto, tão exausto como se só ele estive no exército de sua bandeira, na batalha insana. Dormiu inexplicavelmente muitos dias. Quando acordou, os vermes ainda comiam restos dos seus braços, os ossos amarelos e finos, e vivos, pois, articulados, moviam-se pelas suas vontades próprias e involuntárias. Depois de um banho no rio, os ossos ficaram limpos, e não fediam mais. Não doíam, não sentiam nada, mas obedeciam como sempre obedeceram. E depois de tanto tempo, sentia alívio, um alívio tão leve que lembrava de longe... a felicidade. Esse homem ainda vive na ilha Sozinha. Não fosse lá tão longe, poderia ser visto, quase nu, remando sua canoa, lançando anzóis aos peixes, segurando sua caneca de alumínio, cavando mandiocas com seus braços, mãos e dedos de ossos.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

IGREJA

Às terças, quintas e domingos as noites sobrepesavam mais que sombras. Os demais dias da semana são de alívio fino e leve. Naqueles dias ela vai com vagar para o banheiro; lenta, a ducha perdura séculos como conforto sobre o corpo nu. O sabonete que serve a todos. A escova sobre as unhas, outra escova sobre os dentes. A toalha úmida de outros banhos em horas outras do dia. No quarto apanha a roupa em espera sobre a cama, cuidadosamente engomada. Os cuidados maternos eram exatos, e para toda a família, mesmo diz o que vestir ou melhor não: sabe dimensionar o uso de acordo com o valor da noite, variar o repertório dos guarda-roupas nem tão pobre, e jamais rico. Veste a roupa, de linho, sobre o corpo enxuto. À fragrância da pele limpa acrescenta o frescor da mão embebida no perfume, um creme, uma hesitação. Calça os sapatos, penteia descuidadosamente os cabelos, sempre penteia os cabelos com pressa. Já está arrumada. Vai para a sala, esperar a hora certa e todos prontos, assentada ao sofá. Antes acende a lâmpada. A sala limpa como o corpo. Os carpetes sem pó, as paredes brancas com quadros baratos, as samambaias pendentes respondem à viração que devagar se expande pelo entardecer, lá fora, e atravessa as janelas abertas. Não muito depois, o blaser bege com a saia preta e os saltos médios com a bolsa de zíper. A gravata vermelha e o terno preto com o colarinho rosado. Relógios novos, firmes nos pulsos. Os sapatos de couro vêm pelo corredor; firmes sobre o assoalho, e fazem uma passar diverso dos passos arrastados dos chinelos. E, por último, o menino com os cabelos molhados, penteados para o lado, ainda por pingar algumas últimas gotas vivas. Na parede menor o chaveiro de madeira e ganchos enferrujados, resistente desde os anos sessenta, é desprovido do molho de chaves da casa e do automóvel. A estante fica sem as bíblias e hinários. É inevitável: apertar os dentes e sair com todos. Através do vidro do carro vai perdendo olhares, calada. Cobiça as pessoas despreocupadas, as árvores fixadas nas calçadas que, apesar de imóveis, vão embora da paisagem. Os gradeados de jardim e as fachadas das casas – dos quais ninguém nunca exige mais do que possam dar. E também, e tudo, passam. E pessoas vão, inocentes do poder e privilégios que têm, andando em sentido contrário, e tão bem vão que é irresistível não voltear a cabeça por sobre os ombros e inutilmente retê-las com o olhar quase desesperado em tão avançada contagem regressiva, vendo-as desaparecer de perspectiva através das lentes lúcidas do pára-brisa, puxadas pela distância. A velocidade do carro reduzindo... não para um sinal vermelho do trânsito nem para uma lombada, mas, meu Deus!, para localizar uma vaga e estacionar! Desce, com olhar baixo e coração aflito, invejando as pedras presas na massa asfáltica – não interessa o que ser – nada que fosse, portanto. Pode ser, desta e de outras vezes, um atraso de minutos que interpele a leitura da Palavra e, por respeito, esperar, à porta do templo, que termine. Diante de uma porta como diante do portal do Céu. Iras faiscantes no claro calmo e eterno, podendo, se tocá-la, mortal e mais. E sabe a si inadequada e indevida. Uma dúzia de anos vividos e as mãos levemente tremem e suam porque, apesar do corpo limpo e perfumado, sabe que sua alma cheira mal, gruda e apresenta-se encardida – de transgressões mal arrependidas e reincidentes. Na porta errada.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

ENSAIO DA ALEGRIA

Quantas alegrias fazem a felicidade? E tantas alegrias terminam tristes. E quantas tristezas alegres se fingem, Eu nem sei mais dessa esfinge Em espera nos reflexos iluminados Desse olhar que me ilude. Quantos sorrisos guardam uma gargalhada? E tantos risos do peito à garganta, Mas por que não é engraçado Mais e mais o sapo Empapado na gravata?

TULIPAS

. Laudano para fomes amplas. Sol do oriente. Soro de sono. Sua nutrição ensaia sonhos Dentro da sedação. Piso Essa amargura com meus pés descalços. Sede nos olhos sobre as sementes. Orvalho - veludo fino, lágrimas Persas sobre o solo fertil e frio. Servem para enfeitar o dias claros.

domingo, 19 de outubro de 2008

ESPERANDO ENTARDECER

Trabalho de Campo à Tenda dos Morenos: Rio Araguari esperando entardecer (2007)
AGORA O que sou, Estaciono nas anterioridades Esperando uma força Expor as garras E um salto para uma garganta. As ramagens fremem À minha frente E me sinto muito fera e fome.

domingo, 21 de setembro de 2008

ESTE PAÍS TROPICAL

O Brasil é alegre. Em dias nublados a alegria se evidencia, porque o intenso brilho tropical não atrapalha ver a pobre alegria pobre deste país. Sigo por uma avenida quase rodovia, deserta em ambas as marginais. Passam apressadas e coloridas as bancas improvisadas de melões, melancias, morangos, laranjas, uvas, jacas, puffs cor-de-rosa choque e pipas de perfeitas folhas de seda. Dois vendedores chutam um para o outro uma pequena bola de borracha. Rápida ainda, passo por um ponto de ônibus lotado de pessoas aguardando em pé, paradas; pela minha velocidade a passar por elas percebo-as quase estátuas. Sei do cansaço e da ansiedade que as prostram em espera por um destino imediato – casa, trabalho, diversão... mas vejam como estou alegre, porque as vejo como em uma festa. Estão imóveis somente porque não há música!
Não sei se o Brasil é alegre ou eu estava alegre. Agora, quanto a feliz, vou com mais cuidado, pois a felicidade é uma coleção muito grande de alegrias em elos. É muito difícil ser feliz. Impossível? O que estraga ser feliz é não se saber feliz. Ou seja, ficar sabendo demasiadamente tarde da felicidade, quando é escancarada a verdade da infelicidade para nós.

domingo, 14 de setembro de 2008

RESTAURAÇÃO

Nunca fui de dormir com o olho do céu aberto, principalmente o sol derramando o olhar iluminado das tardes. Dormir até tarde é outro safári – é uma continuação da noite sobre a manhã que o sono ainda não percebeu. No entanto, estando muito cansada e tendo tempo, e sendo cedo ainda, antes, bem antes da hora dos anjos... então me vejo nessa última tarde em que meu espírito pareceu cair completamente do corpo. Janela aberta, a tarde quente, o ventilador acenando para as paredes; entreguei-me ao lençol impecavelmente arrumado sobre a cama, esqueci as horas restantes da tarde, sem compaixão ou necessidade. A impressão é que o corpo estava leve do peso do espírito que, com seu peso de preocupações e cansaço, desceu completamente até quase alcançar o centro da Terra, só voltando quando, o peso saindo, pode regressar e, aliviado, re-encontrar o meu corpo e o corpo se abrir, olhos na luz, livre e salvo. O melhor sono é quando se quer muito e quando se pode e quando se deixa dormir quanto se precisa... ao acordar a sensação é de pura paz e restauração. A sesta é um prazer para quem sabe. Sábios trópicos esses que fazem da sesta uma qualidade nacional...

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

SÁBADO SOBRE A PRAÇA

Sábado quente’ nsoladarado. Após as compras, antes dos encon- tros que rolariam pelo resto do dia, me vi sozinha na praça Fulano Importante de Tal. Minha respiração ficou diferente, tão calma e compassada, os músculos do meu rosto se soltaram, ignorando qualquer tipo de máscara. Procurei um banco, à sombra meio falha de uma palmeira e sentei... ... normalmente sentada, mas havia em mim uma rigidez mística, que abriu outros olhos atrás dos olhos meus atrás dos óculos escuros. Um gato cinzento e vagabundo, do nada, desceu de uma árvore e sumiu entre os arbustos. Um casal de garotas passou abraçadas e, no meio da praça, parou para um beijo. Elas disseram alguma coisa e gargalharam. As pessoas sentam para: fumar, beber água, conversar ao celular e dar um tempo a si mesmas. A maioria utiliza a praça apenas para encurtar o caminho. De algum lado apareceu, quando virei a cabeça, uma pastora de cães: uma mendiga com um pouco mais de dez vira-latas. A praça é ampla em seu território e, com tantas árvores antigas, os carros que passam nas ruas que a ladeiam apenas fazem um som grave e constante, como se passassem todas a uma boa distância daqui. A tarde é a cor da luz sobre todas as coisas, e o calor dessa luz. A tarde refletia com insistência sobre as folhas das copas, recobrindo o verde de brilho. De um lado, o colégio estadual antigo, do outro a matriz católica, onde o sino do relógio terminou de bater três vezes. Prédios altos perfilam-se velando a praça pelas décadas que chegam e vão. Um homem sentou na outra ponta do banco, mais ao sol, sorriu para mim e depois se encolheu dentro de si. Eu sorri depois, quando ele não estava mais olhando. Pombas, em seus vôos rápidos e pesados cruzam a praça sem medo das pessoas ou de outra coisa. Chegam aos nossos pés caso um grão ou migalha se dê por percebida aos seus olhos de botão. A pastora de cães reapareceu e desapareceu, com todos os cães e algumas. Fui comprar uma água na lanchonete e voltei re-encontrando o que deixei – porque fosse o que fosse, apesar de estar em mim, pois eu estava disponível, também estava na tarde. Uma pomba das pombas de pesado vôo rasante passou rente à minha frente, com a ponta da asa roçando minha testa – recuei súbita e curta movida pelo susto e, enquanto continuava a presença mística, meu corpo formigava por conta da química do susto. Tenho notícias que essa praça, em sábados como estes, e aos domingos, tinha um lado para os negros e outro para os brancos burgueses e pobres. Estas plantas, e estas árvores, algumas muito velhas, tiveram outras praças que se esquecem sobre essa. Noto que não se consome a praça. Não estando mais tão disponível, ela nunca sairá daqui, a sua disponibilidade se apresenta quase infinita. Pouco depois fui embora desse quintal cercado de prédios. Fui embora, mas também me deixei lá, esperando o que desconheço.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O EXERCÍCIO MÁXIMO DA ISENÇÃO

Não sou apaixonada pela metaescrita. Um poema sobre poema. Um conto sobre o conto. O texto sobre o texto, enfim. Tal como desconfio da literatura histórica; principalmente, vejo com um nascente horror a ficcionalização de personagens e eventos reais. Sou assim. Jonas, abaixo, nesse blog, que me perdoe. Mas quem escreve, seja qual for o motivo, sempre dialoga com o próprio escrever. E hoje, olhando como a um espelho, procurando me ver nas minhas palavras, vejo com certo espanto essa paixão exercitada pela isenção máxima, pura e purificada. Luvas. Máscara. Sapato. Evitar uma contaminação, porque o sujo de tudo é uma fortuna excessiva. Eu quero ainda algo de mim brilhando como um reflexo. Dentro das luvas, atrás da máscara, sobre os sapatos. Aí, atrás de tudo, estou pronta. E vou começar.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

LÍRIO DA AMAZÔNIA

Nasceu a mais de cem quilômetros daqui. Veio no porta-malas, sem ver nada da rodovia, mas sentindo a velocidade e a intempéries da rodovia, como todas as instáveis federais. Veio para comemorar a sala nova, fazer pose e enfeite, adulta já. Chegou em seu vaso de cimento, planta já adulta, de um verde sério. A sala, pela tarde, é ensolarada, se deu bem com tanta luz sem calor excessivo. Teve uns primeiros dias de cuidados, de atenção dada às novidades, amando sua porção de solo, amor visto na seiva forte de seu verde brilhante. No entanto, os cuidados foram se distanciando, o costume pleno de cotidiano foi reduzindo sua figura a uma perpeção naturalizada... ver o vaso de planta como ver uma cadeira... Um dia uma das meninas da limpeza recolheu algumas folhas já mortas e deu-lhe de beber à sede. A planta passou os dias seguintes construindo uma gratidão. Um cacho de flores brancas nasceu, algumas abertas, outras ainda botão. Escondidas entre as folhas largas, ninguém percebeu essa gratidão que é a simples possibilidade de continuar viva. Mas está lá. Vai inchar sua beleza até não ser, mais... ignorada.

sábado, 9 de agosto de 2008

POEMA

O papel é um espaço, Tão largo quanto o universo, Tão denso quanto o tempo, Tão finito quanto uma vida. E nele, limpo, o que desespera É a espera.

A MANHÃ E O PÓ DE CAFÉ

Amanheci. Não posso dizer que não. E antes ainda de me reconciliar com a luz, chego à cozinha, procurando a panela para ferver água. A pia cheia de copos com bordas borradas de batom. Palitos de fósforos queimados, formigas procurando açucar (antes não tinha), o filtro sem água. Olhando o fogo azul do fogão, vou lembrando os compromissos do dia, os compromissos em atraso, a curva longa da vida me puxando para o futuro.
A janela, grande e carregada de luz jovem do sol, é um escancarado bom dia. Autoritária, a manhã não aceita escusa. Quem quiser recusar que feche os olhos, e espere a noite chegar.
* * *
No final da primavera, chegam os pernilongos, lembrando onde é o sertão. Voam pesados, perturbando a atenção da luz plena do dia e, à noite, mal se apagam as lâmpadas, reaparecem de seus lugares, alegres, trazendo suas presenças para os rostos que tentam adormecer, fazendo rasantes próximos às orelhas com seus "violinos finos". Não resisto: acendo a lâmpada e ascendo palmas espaçadas comemorando eu também com alegria cada fúria assassina que os aniquilam. Estes, primeiros da estação, de que vivem? Pois de fato são uma mancha negra morta, sem as explosões sanguíneas que os fazem tão fáceis vítimas de aplausos. E tenho mesmo poucas marcas na pele dessa agulhas vampiras.
Enquanto lavo as mãos, pela água gelada penso uma maldição contra esses seres negros da leveza.
A gente reage, mas a natureza sempre lembra e resolve alguma submissão, para sabermos que não somos perfeitos. Tudo o que a gente pode é tentar. E atentamos contra os limites da natureza. É beligerante ser divino.
*
Mas já que amanheci, convém não lembrar a noite.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

VERÃO

Noites como essa aconteciam vez por outra em sua vida. O calor alcançava as sombras da madrugada, mas já sem suor. Um luão amarelo, muito quieto, reinventando os céus e as nuvens noturnas, breves. A janela do quarto, aberta para o ar que, de tão fresco, acalentava uma paz por tudo espalhada, e as cortinas descerradas. E descerrados os olhos dela. Deitada ao lado dele, o coração pequenino nem agitava aquela angústia? Queria tanto que ele a abraçasse agora, falasse as coisas certas e a protegesse disso o que fosse que vinha da noite e, sobretudo, da sua vida. Ela não o culpava. Ele estava cansado e ressonava profundamente como a noite profundamente se estendia à eternidade. A inquietação não a deixava fechar os olhos. Pelo olhar, e para o nada, tinha que escapar o que fosse que apertava o seu íntimo. O lençol leve, as costas alvas dele na penumbra do luar vazado nas vidraças e um ramo de sombra fazendo ternura e agitando nenhum arrepio em seu sono tranqüilo. Passou o braço sobre a cintura dele e pousou de leve o rosto sobre suas costas quentes. De tanto amor, um par de lágrimas transbordaram, lentas e tão leves que apenas com muita dificuldade o planeta exercia sobre elas o seu poder titânico. Fizeram um caminho único e atravessado até pousarem, em uma gota gelada (porque já tocada pela noite), o corpo adormecido dele. Tocado, ele abriu os olhos no meio do sono, suspirou profundamente, alternando a melodia da respiração. Mudando de posição, abraçou-a inteira para trazê-la para a paz. E a trouxe.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

TARDES DE CHÁ

E ultimamente estamos a tomar chá. Chá verde, de porongaba, de hibisco. Regamos o trabalho com as essências milagrosas dessas naturezas. Antes, ano passado, tomávamos o de 30 ervas: uma das coisas poderosas do mundo? Pelo menos, quantidade sempre deveria intimidar e assustar. O cuidado estava no preparo, pois um simples gesto da colher poderia diminuir a mistura para 15 ou 22 ervas. Tinha o gosto de tudo e bebíamos dois litros.
Orientais e indígenas, agora tomamos chá com fé no milagre do emagrecimento e da boa saúde. Mas não somos muito bobas não. Fingimos ser adeptas do milagre. Na verdade, lavamos o organismo e, sobretudo, instituímos um ritual que funciona como vírgula na sintaxe das nossas atividades, com efeitos de sentido claros: mais banheiro, uma ou outra taquicardia, uma ou outra insônia acidental.
E como nossa vida é agitada, e não estamos na sala de casa, não dispomos de chávenas nem de dedos mínimos em riste, e sim de copos brancos de plástico descartável, cuidadosos, ao lado do teclado. Enquanto lá fora a tarde se desmancha, também nosso chá, envolto na louça branca do bule, emprestado da cantina, entardece: ainda com o vapor transparente, nos chega quente como o meio-dia e, na medida em que as horas se completam e os goles se compassam, espaçados, se torna frio como a noitinha...
*Esse texto é para uma amiga, cuja alegria fez muita falta hoje, no chá, na tarde, na semana que ainda não terminou. Ai que odchio!!!

CONTOS. Unicamp ano 40

Esta antologia foi lançada ano passado, pela Editora Unicamp. Resultou de um concurso de contos, em nível nacional, do qual participaram mais de 600 escritores, sendo selecionados 40.
Participo com o conto "Destino".

PEQUENO ENSAIO SOBRE UMA ESTRELA

Olho uma estrela no vazio. Deste lugar do quintal, uma estrela é tudo que vejo da noite e, isso sei, existe essa estrela. Ou não, se a dúvida científica eu tiver. Tão distante. Não pode me fazer mal algum. Embora nela haja força para me aniquilar ao nada. Nem alma, tendo, se salvaria. Além da existência, outra coisa dessa estrela é o impossível. Outra, o testemunho. As características, dentre outras, como existência, ela sabe, e as percebe. Será que os pássaros ou os animais olham as estrelas? Fico infantil, olhando-a. Será como uma estrela é olhada pelo olhar poderoso de uma águia; melhor: como é uma estrela dentro do olhar maravilhoso de uma águia? Fico, de fato, ingênua. E se algum animal olha estrelas, algum se deteve a olhar esta estrela que vejo? Sei que os humanóides e a humanidade resumida em meu sangue alguma vez se perderam, minutos, outros, quase loucos, horas completas vidrados nessa estrela que nem sei o nome, astrônoma que não sou, mas cosmóloga por amor às jóias celestes. Outra explosão na existência dessa luz... fragilidade. Parece tão ínfima que um sopro a apagaria, que prensada entre as unhas se perderia para sempre, um piolho às unhas furiosas. Parece que ela passeia no céu, mas é a Terra que passa por ela - tenho, não podia deixar de ser, as lições de geografia. A minha casa passa por ela. Mais uns minutos e ela se esconde atrás do muro. As estrelas se põem, sóis que são, ovos que postos são, com vida pura esperando. O escuro da madrugada, se olhado com concentração, parece ter o vazio pontilhado de zincilhões de estrelas, ou galáxias, mas tão tão tão distantes que se apagam, embora não ao ponto de fazer da noite um escuro perfeito. Estrelita! estrelinha! Minha enquanto estes instantes insistem! Treme fria quanto a chama quente de uma vela. Nela, o silêncio da humanidade passada, como o silêncio de minha infância para sempre bela e superada. Testemunhou tudo isso, sem precisar de nada. Queria viajar para ela, viajando para o nunca. Perseguir o sempre, perseguindo-a. Estrelinha viva através dos meus óculos, estrelinha derretida através da minha miopia, estrelinha a despeito de tudo, desencontrada da minha vida. Minha vida, que é tão importante para a humanidade quanto uma gota, um respingo d’água. E não obstante, o corpo não viveria sem suas células. A estrelinha é uma lágrima congelada na contemplação. Uma lágrima que não se realiza, apesar da vontade. Alto sendo o prédio, as lâmpadas da cidade são, ao longe, como estrelas e como lágrimas. E eu sou como uma garrafa vazia de vinho. Me dei a outros e nada sobrou, a não ser a inutilidade, ou um injusto enfeite.
Entre mim, a estrela e a vida: o frio da madrugada.
Eu deveria pertencer à maioria das pessoas dessa cidade, com os olhos mergulhados no sono, e o corpo esquecido no descanso. Mas algo me comove e por isso eu não me pertenço. E embora eu seja sólida na existência, como o gelo na água eu não afundo, eu não me aprofundo, e flutuo até a estrelinha que, nessa noite, se apropria de mim como a mim mesmo não me pertenço.
Apenas a respiração e as palavras me convidam. E isso é uma pobreza imensa! Volto ao quarto porque, no inverno tropical, quero calor. Me culpam essas horas inúteis. Nem uma pedra besta ao lado de uma estrada rural é inútil. No entanto, ser assim essa pedra é ser só um corpo: útil como o corpo: adubo, que faz coisas incríveis; faz as flores. E grande coisa são as flores – somente a sexualidade das plantas. Nós gostamos da sexualidade de qualquer coisa. Um buquê de sexualidade, veja o que os enamorados se ofertam, e como o fazem bem. Eu fico, realmente, infantil e ingênua. Chego à janela, atendendo ao canto de um galo quase sumido em uma galáxia invisível; a estrelinha ainda suspirou como um ponto final, e se perdeu, consumida na claridade em fogo do alvorecer.